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Por isso esse blog possui esse nome... Jigoku No Sora,
o Teto do Inferno

"Esse eu insensato, que tem tão pouca chance de salvação, é totalmente incapaz de resistir a desejos intensos e comprometimentos, a essa sucessão de dias e noites, inegavelmente reais, passada sob o constante tormento das ilusões monstruosas; isso é o inferno." - Hiroyuki Itsuki

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5 de abril de 2008

A semana que abalou o Tibete: uma reconstituição

(por Sylvie Kauffmann, Brice Pedroletti e Bruno Philip)

(com Frédéric Bobin)

Na sexta-feira, 14 de março, a violência tomou conta de Lhasa, a capital do Tibete chinês. Qual seria ao certo a seqüência de eventos que antecedeu, efetivou e depois se seguiu a esta "sexta-feira negra" que projetou brutalmente o Tibete como destaque na mídia e na cena diplomática mundial, colocando ainda a China numa posição defensiva? Mais de quinze dias depois dos fatos, muitos são os elementos que permanecem sem explicação. Os testemunhos são parciais. A intoxicação da propaganda política levantou a sua cortina de fumaça. A impossibilidade para a imprensa de trabalhar dentro de condições independentes num Tibete trancado a sete chaves pela forças chinesas hipoteca a procura da verdade. Contudo, depois da grande confusão dos primeiros dias, tornou-se possível agora enxergar um pouco melhor o que realmente aconteceu. Tudo começa na segunda-feira, 10 de março em Lhasa. No Tibete, o dia 10 de março é sempre uma data complicada: é o aniversário do levante de Lhasa em 1959. Na ocasião, o 14º dalai lama, com idade de 23 anos, havia optado por fugir, passando pelos desfiladeiros gelados do Himalaia para se refugiar na cidade indiana de Dharamsala. Até hoje, o episódio constitui um motivo de luto político para os tibetanos. A data permanece sensível, mas não necessariamente explosiva. Mas este dia de 10 de março de 2008 é muito especial. Os Jogos Olímpicos de Pequim serão realizados dentro de cinco meses, e os holofotes da imprensa internacional estão voltados para a China cintilante. Para os tibetanos, esta é uma excelente oportunidade. Eles estão decididos a tirar proveito deste momento excepcional para fazer com que a sua voz seja ouvida.Quantos deles estão reunidos na primeira hora do dia desta segunda-feira? 200? 300? 400? São 6h da manhã e eles saem do grande mosteiro de Drepung, situado a 8 km a oeste de Lhasa.


Foto de 22 de março mostra monges correndo ao lado de carros incendiados em Lhasa
Em meio ao ruído surdo produzido pelo pano dos seus hábitos vermelho-alaranjado, os monges tomam o caminho que leva até o centro da cidade. Nenhum slogan político é proferido. Os religiosos estão exigindo uma única coisa: a liberação daqueles dos seus colegas que foram encarcerados em outubro de 2007 por terem maliciosamente celebrado uma vitória diplomática do dalai lama. Em Washington, o chefe espiritual dos tibetanos havia então recebido - das mãos de George W. Bush - a medalha de ouro do Congresso americano. Em Drepung, alguns dos muros do mosteiro, como que por acaso, haviam sido repintados de branco no dia que se seguiu a este evento. O desafio silencioso não tinha passado despercebido da polícia chinesa. Os supostos líderes da operação haviam sido presos.Portanto, neste dia 10, os monges estão marchando. A pequena tropa não tarda a se deparar com uma barragem de forças da ordem. Frente ao obstáculo de escudos, os religiosos optam por ficarem sentados no asfalto. O ato pacífico prossegue por algumas horas, até que a assembléia resolva dispersar-se. Naquela altura dos acontecimentos, a polícia se mostra cautelosa. Ela recebeu aparentemente instruções para manter uma atitude de moderação. No crepúsculo, um novo agrupamento de monges se forma, desta vez no centro da cidade. Monges e estudantes afluem para se reunir no centro da Praça Barkhor. Eles vão formando um amplo círculo, segurando-se pelas mãos. Policiais de uniforme ou a paisana também estão presentes, em massa. Seis ou sete manifestantes são embarcados num camburão. O ambiente em Lhasa está ficando extremamente pesado.No dia seguinte, terça-feira, 11 de março, o céu acima de Lhasa continua tão azul como na véspera, daquele azul puro das altitudes himalaias, mas o clima está mais para a tempestade. Monges de Drepung avançam novamente na calçada, galvanizados pelas prisões efetuadas na véspera. Eles são imediatamente seguidos por outros religiosos do mosteiro de Sera, situado a 4 km ao norte da cidade antiga. Estes últimos estão erguendo bandeiras tibetanas. Os incidentes ocorrem no final da manhã, quando a polícia chinesa, que conta com o apoio das forças paramilitares da Polícia Armada do Povo (PAP), decide dispersar os manifestantes por meio da força. Bombas de gás lacrimogêneo são arremessadas, enquanto os monges são agredidos a golpes de cassetete.Na quarta-feira, 12 de março, a tensão, que já é palpável, cresce mais um pouco. Os rumores segundo os quais houve tentativas de suicídio de dois monges de Drepung, que teriam seccionado seus antebraços, deixam as mentes ainda mais febris. Outros monges de Sera teriam iniciado uma greve da fome. Dentro deste mesmo mosteiro de Sera, monges são espancados pela polícia, segundo relata uma testemunha à BBC.Um turista europeu, que costuma visitar a China com freqüência e que estava então em férias em Lhasa, relata que a partir daquele momento o bairro tibetano passa a ser investido pela polícia. "A cada 10 a 15 metros, atravessando o circuito das peregrinações em volta do templo do Jokhang, no meio da rua, uma mesa havia sido instalada com quatro cadeiras, ao lado de policiais de plantão", conta o turista ao repórter do "Le Monde".O Jokhang constitui o coração da Lhasa antiga, um local de santidade suprema diante do qual se prosternam dezenas de peregrinos que não raro vieram dos cantos mais remotos do Tibete. Com as mãos juntadas acima da cabeça, eles se ajoelham, se jogam no chão, repetem as suas genuflexões por vezes sucessivas após terem completado, no sentido sagrado dos ponteiros de um relógio, os dois círculos da procissão circular em volta do Johkang. Alguns dias mais tarde, a tragédia será vivida nos arredores deste templo. No Jokhang, os religiosos estão todos reunidos no primeiro andar, onde eles vivem. Na quinta-feira, dia 13, um deles se debruça numa janela e consegue transmitir para alguns turistas a seguinte mensagem: "Not so good here" ("A situação não está muito boa por aqui"), segundo relata um visitante europeu.Na sexta-feira, 14 de março, a mecânica infernal está pronta para funcionar. Depois dos mosteiros de Drepung e de Sera, é a vez do templo de Ramoche começar a agir. No final da manhã, logo depois da oração, uma marcha de monges começa a se organizar, mas ela é imediatamente bloqueada pela polícia. Os religiosos ficam sentados no chão. Por volta das 14h, o turista entrevistado pela reportagem do "Le Monde" vê dezenas de caminhões militares avançando em velocidade rumo ao bairro tibetano. "Os monges se recusaram a sair do lugar", lhe explica o seu guia. "A polícia então os atacou e os populares reagiram, incendiando um veículo militar". Os "populares", portanto, "reagiram".A grande novidade no processo é que os "curiosos" tibetanos resolvem se jogar de cabeça na briga. Saraivadas de pedras são arremessadas contra os escudos da PAP, que cede diante da força do ataque. Começa então o motim. A multidão em fúria toma conta da Rua de Pequim, a artéria principal que atravessa Lhasa de leste a oeste, e depois se espalha pelas alamedas da cidade antiga.A cólera dos tibetanos, que tomou conta tanto dos laicos quanto dos monges, se manifesta então, alvejando raivosamente tudo o que simboliza dezenas de anos de colonização chinesa. Os amotinados apedrejam caminhões da polícia, concentram os seus ataques contra os escritórios da agência de notícias China Nova, contra os edifícios da segurança pública, o complexo comercial Baiyi, e contra uma mesquita cuja porta principal está em chamas. Eles agridem com violência os chineses han que eles cruzam no seu caminho, incendeiam todas as lojas comerciais que pertencem a não-tibetanos. Uma escura nuvem de fumaça começa a encobrir Lhasa.Em meio a este caos generalizado, os rancores longamente acumulados entre tibetanos e migrantes han ou hui (muçulmanos), que são proprietários da maior parte do comércio em Lhasa, explodem na forma de um ódio desenfreado. O motim adquire um caráter abertamente racial. "Aquilo era um derramamento de violência étnica de natureza a mais desagradável que possa existir", contou James Miles, um correspondente em Pequim da revista "The Economist" e o único jornalista estrangeiro que estava presente em Lhasa naquele dia.Por sua vez, o correspondente da revista semanal alemã "Die Zeit", George Blum, desembarca na cidade no dia seguinte. Ele descobre a extensão dos estragos ao caminhar pela cidade antiga praticamente deserta. Ele fica espantado "diante da amplidão das destruições e das marcas de uma violência tão grande que ela chocou alguns tibetanos, apesar de estes serem profundamente hostis aos chineses". Jovens que haviam participado dos motins bancam os valentes diante deles. Eles exclamam: "Nós lhes mostramos, aos chineses, tudo aquilo que nós somos capazes de fazer..."O motim vai prosseguir até o sábado, 15 de março, em meados do dia. O balanço da destruição é considerável. Segundo as autoridades chinesas, foram recenseados 22 mortos, dos quais a maioria é de "inocentes" que foram queimados no incêndio do seu domicílio. Já, segundo afirmam assessores do dalai lama, cerca de 140 pessoas foram mortas, das quais um grande número perdeu a vida durante a repressão policial que se seguiu às arruaças. Segundo algumas testemunhas tibetanas, 26 pessoas teriam sido mortas somente na prisão de Drapchi. Contudo, não há nenhuma imagem disponível para ilustrar esta repressão sangrenta, ao passo que um grande número de documentos vem comprovar as agressões raciais anti-han e anti-hui. Esta é a grande força da propaganda chinesa.Na sexta-feira e na manhã de sábado, turistas viram veículos blindados de transporte de tropas equipados com canhões circulando pelas grandes artérias de Lhasa. Eles ouviram disparos de armas de fogo, rajadas de metralhadoras. Mas, terão sido disparos de advertência? Ou tiros à queima-roupa? Ninguém sabe, uma vez que os testemunhos dos estrangeiros são auditivos, e não visuais. Por sua vez, alguns tibetanos afirmam terem visto a partir da sexta-feira, vítimas caírem mortas diante deles. "A polícia atirou na multidão com balas reais", relata uma testemunha na Radio Free Asia.A repressão mais intensa veio à tona a partir de sábado ao meio-dia na cidade antiga cercada e interditada, quando as testemunhas foram mantidas à distância. Os turistas estrangeiros foram pressionados para saírem e ficarem afastados. Sabe-se que as operações policiais se multiplicaram, que operações de prisão em massa foram realizadas. Mas as circunstâncias precisas permanecem desconhecidas, assim como o número das eventuais vítimas. Lhasa tornou-se um "cofre hermético" onde é possível imaginar que o pior pode ter acontecido, mas, por enquanto, nada pode ser provado.No meio desta história trágica, um outro mistério, muito perturbador, merecerá ser explicado algum dia. As forças chinesas, apesar de estarem concentradas maciçamente e prontas para a intervenção, terão aguardado por mais de 24 horas antes de "limparem" o terreno empregando os enormes meios à sua disposição. Durante este período, elas deixaram os amotinados saquearem, queimarem e destruírem com toda liberdade. Será porque elas tinham perdido o controle da situação? Será que elas tinham recebido instruções para mostrarem moderação de modo a que fosse evitado um banho de sangue que poderia ser filmado, um "massacre da Praça Tiananmen" tibetano que teria sido fatal para os Jogos Olímpicos de Pequim? Ou terá sido o fruto de um maquiavelismo que consistiria em deixar o caos se instaurar na cidade - nem que fosse ao preço da morte de pessoas "inocentes" - de modo a justificar uma repressão à qual ninguém pôde assistir? A história dos motins de Lhasa, portanto, ainda está por ser escrita.Contudo, as atenções já estão se voltando para outros lugares. Não foi apenas em Lhasa que o Tibete se amotinou. A revolta propagou-se por outras áreas em volta da Região Autônoma, isto é, fora do Tibete estritamente administrativo. Nas regiões de povoamento tibetano do Amdo e do Kham, que estão vinculadas atualmente às províncias chinesas do Qinghai, do Gansu, do Sichuan e do Yunnan, cerca de trinta focos de protestos foram identificados. O universo tibetano, apesar da sua pulverização administrativa e geográfica, reagiu de maneira solidária. Logo em 15 de março, centenas de monges do mosteiro de Labrang, em Xiahe (na província do Gansu), organizam uma marcha pedindo pelo retorno do dalai lama, e acabam esbarrando nos escudos da Polícia Armada do Povo. Muito rapidamente, diversas localidades do Amdo e do Kham também passam a ser os palcos de distúrbios.É difícil determinar com certeza se manifestantes foram mortos pelas forças da ordem durante esses movimentos, além do número das vítimas. Mas, na prefeitura tibetana autônoma de Aba, no noroeste da província do Sichuan, em 16 de março, os protestos degeneraram: tal como aconteceu em Lhasa, comércios chineses, veículos além de uma delegacia foram incendiados. Os registros oficiais não assinalam nenhuma vítima chinesa. Os monges do mosteiro de Kirti conseguiram recuperar os corpos de cerca de quinze tibetanos mortos por balas. As fotos de oito desses cadáveres não tardam a circular no exterior. Trata-se praticamente das únicas fotos que foram feitas da repressão chinesa.Outros incidentes graves são deflagrados em 24 de março em Luhuo (Drango em tibetano), na prefeitura autônoma de Ganzi, no Sichuan. A reportagem do "Le Monde" conseguiu obter o depoimento de um tibetano originário da região. "Foram as monjas as primeiras que saíram para ocupar as ruas, em 24 de março, por volta das 16h", conta. "O seu mosteiro, o Ngyoe-go, fica a uma dezena de quilômetros da principal cidade do distrito. Elas desfilaram gritando slogans que pediam pelo retorno do dalai lama. A polícia armada as bloqueou e as obrigou a subirem dentro de caminhões para conduzi-las de volta até o mosteiro. Depois, foi a vez dos monges do mosteiro de Chokri, mais perto da cidade, descerem até a cidade. Eles foram seguidos por um grande número de aldeões. Os policiais quiseram impedi-los de terem acesso aos prédios da administração. As pessoas cantavam, reclamavam a liberdade para o Tibete e o retorno do dalai lama. Então, confrontos teriam ocorrido. Pedras foram arremessadas em direção aos policiais. Depois, os chineses afirmaram que um policial havia sido morto por uma pedra, mas ninguém viu o que aconteceu. A polícia atirou. Um jovem monge morreu. Um aldeão também teria sido morto, mas, neste caso, não ficou muito claro. Na noite daquela segunda-feira, as forças de polícia se deslocaram até o mosteiro das monjas, obrigaram-nas a ficarem ajoelhadas e prenderam todas elas, exceto as mais idosas".Esses incidentes em Luhuo ocorrem em meio a um ambiente já muito pesado. Da mesma forma que em todos os outros lugares nas zonas tibetanas, as pessoas, nesta região, estão há meses à beira de um ataque de nervos. A perspectiva dos Jogos Olímpicos conduziu as autoridades a endurecerem o seu controle. Ao acompanhar as manifestações nas regiões tibetanas do Sichuan, o enviado especial do "Le Monde" pôde constatar o quanto a população está apegada ao dalai lama. E o quanto era profundo o desespero por vê-lo "vaguear tão longe do seu território", numa idade cada vez mais avançada. Muito antes do levante de março, os apelos por um retorno do dalai lama, que eles emanassem de monges ou de nômades, haviam alimentado uma tensão recorrente.No decorrer da campanha de "educação patriótica" que foi deslanchada em setembro de 2007 em toda a prefeitura tibetana de Ganzi, no Sichuan, os policiais e os oficiais haviam circulado por toda a região, indo de mosteiro em mosteiro, para obrigar os monges a denunciarem o dalai lama. Para tentarem evitar este constrangimento, em Batang, segundo contou uma testemunha, todos os monges partiram "em férias", deixando no lugar apenas o responsável do "comitê de direção democrática" que, dentro de cada mosteiro, tem supostamente o papel de estar às ordens do partido. Quando os oficiais chegaram, este monge lhes mostrou o mosteiro vazio e declarou: "Por que vocês não tentam obrigar militantes hui (muçulmanos chineses) a comerem carne de porco? Se vocês conseguirem, então nós renunciaremos ao dalai lama". A cólera estava crescendo na surdina. Bastou uma centelha em Lhasa para que ela tomasse conta de todas as mentes.

Tradução: Jean-Yves de Neufville
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fonte: http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/200
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2008/04/05/ult580u3006.jhtm

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